Mentiram para você sobre o yoga

Prática de yoga na década de 1970, nos EUA,
sob os auspícios da religião da Nova Era.

Sim, mentiram para você sobre o yoga — e isto é metade do que você precisa saber.

Se você reconhece e admite que passou uma parte importante da sua vida de yoga acreditando em mentiras, então você já escalou metade do buraco em que você se encontra.

A outra metade será escalada quando você verificar a lista a seguir e identificar as mentiras que você abraçou como se fossem verdades.

Sei que esta é uma tarefa pestilenta e nauseabunda e que a mera passada de olho neste artigo tem grandes chances de desagradar muita gente.

Mas não se aflijam. Esta lista de mentiras não será extensiva e definitiva. Vou apresentá-las à medida que lembro delas, sem qualquer hierarquia. Como minha memória não anda lá aquelas coisas, então já viu, né.

Sei também que muita gente se melindra quando escuta alguém dizendo «tal coisa é mentira», porque logo aparece alguém muito esquisito dizendo que eu estou chamando o Joãozinho e a Mariazinha de mentirosos. Na verdade estou mesmo.

Mas é o seguinte: se alguém, pergunta a você «que horas são?» e você diz meio na pressa «meio-dia» e erra, sem nem conferir o relógio, a rigor você está mentindo. Você pode ter tido a melhor das intenções, mas mentiu. Mentir é simplesmente faltar com a verdade, seja por desconhecimento, seja por má intenção.

Se você já contou algumas dessas mentiras ou se já acreditou nelas, com a lista a seguir você parar de mentir por desconhecimento. Se depois disso você insistir nelas, saberemos que o seu lance é má intenção mesmo.

Boa leitura.

***

MENTIRA 1: RAJA YOGA

A mentira: Raja Yoga é o yoga dos Yoga Sutras, é o yoga de Patañjali.
A verdade: não existe nenhuma referência tradicional que mostre o Raja Yoga como um sistema disciplinar, como um tipo de yoga a ser praticado. «Raja Yoga» é sinônimo de moksha.

Todos os professores de yoga que eu conheço falam que Raja Yoga é o yoga de Patañjli e o descrevem como um sistema disciplinar composto pelos oito passos descritos nos Yoga Sutras.

Muitos desses professores entendem o Hatha Yoga como uma espécie de preparação física para esse Raja Yoga, entendimento que se apóia principalmente no primeiro verso do Hatha Yoga Pradipika:

«O Hatha Yoga é como uma escada para aqueles que desejam atingir o elevado Raja Yoga.»

Não foi Patañjali quem começou a coisa toda, 

mas se não fosse por ele, caramba…


Só que «o elevado Raja Yoga» não é uma prática. Para explicar isto, precisamos lembrar de alguns pontos importantes:

  1. Não há nenhuma menção a «Raja Yoga» nos Yoga Sutras. Portanto, a associação dos Yoga Sutras com «Raja Yoga» é apócrifa. Só isto já seria suficiente para desfazer a confusão aqui, mas prossigamos.
  2. Os Yoga Sutras são um pequeno manual para entendimento do yoga, não um guia prático, não uma descrição detalhada de um sistema disciplinar. Ninguém aprende a praticar yoga com os Yoga Sutras. Qualquer guiamento prático atribuído a Patañjali na verdade é uma «dedução criativa», uma invenção posterior. Logo, se existisse um «Raja Yoga» como um sistema prático, ele não estaria em nenhuma escritura, muito menos nos Yoga Sutras.
  3. Raja significa «real», não como o oposto de irreal, mas relativo a «rei» (no inglês: «royal»), no sentido de elevado.
  4. «Raja Yoga» é uma expressão que pode ter dois sentidos:
    • a disciplina da meditação que leva ao estado de libertação (moksha);
    • moksha, a própria libertação, o estado de realização plena obtido por meio da disciplina de meditação.
  5. No Hatha Yoga Pradipika, «Raja Yoga» é usado precisamente com o segundo sentido, como sinônimo de moksha.
  6. Se o yoga de «Raja Yoga», no Hatha Yoga Pradipika, significasse a disciplina da meditação (item a, o primeiro sentido), seria possível entender o Hatha Yoga como uma espécie de preparação para essa disciplina. No entanto, esta disciplina não existe senão como invenção moderna. 

Em resumo: «Raja Yoga» como disciplina, como sistema dos Yoga Sutras ou como Yoga de Patañjali é algo que não existe em nenhuma escritura e nenhuma fonte tradicional. O mais correto seria chamar o yoga dos Yoga Sutras de «Ashtanga Yoga» ou de «Patañjali Yoga».

MENTIRA 2: O CORPO É FUNDAMENTAL
A mentira: yoga é prática de posturas. Com o yoga você vai ter um corpo mais flexível, mais forte e mais saudável. Não existe yoga sem essas transformações.
A verdade: seu corpo vai se transformar, sim, mas isso é uma parte muito pequena do yoga. Existe, sim, yoga sem transformações corporais.
«Seguinte, champs: teu pé tá torto. Gira ele 2,5º em sentido 
anti-horário, tensiona a patela e o vasto intermédio, mas sem 
tensionar o vasto medial. Entendeu? Nem eu.»

Esta mentira está relacionada a diversos termos e expressões: alinhamento, vinyasa, flow, fortalecimento, fitness, alongamento, props, prática dinâmica, saúde, cura, terapia, anatomia ocidental etc.

Prática de yoga em Big Sur, Califórnia, EUA, 1959.
Mas poderia ser dança pós-moderna, com música incidental de John Cage.
Ainda não se usava o termo fitness nesta época, mas o cenário já estava pronto.

A explicação aqui é curta, porque esta mentira já foi o tema de inúmeros artigos meus (este e este, por exemplo). Basta dizer o seguinte aqui:

Todos os sistemas disciplinares modernos chamados de yoga (doravante ginástica mística) são o resultado de uma soma para lá de cabulosa dos retalhos de três elementos que não têm relação com yoga:

  1. a medicina ocidental,
  2. a ginástica militar indiana (disfarçada como mallakhamb; pesquise vídeos sobre isto) e
  3. a teosofia (que décadas depois daria origem à cultura New Age).

O único yoga em que existem técnicas corporais destinadas a conduzir o indivíduo à meditação é o Hatha Yoga. E, de acordo com todos os hathayogis e todas as escrituras do Hatha Yoga, o corpo não é importante como um fim em si mesmo, mas sim como um meio de se conduzir para a prática de meditação e autoconhecimento.

Quem não entende isso jamais vai entender a relação que há entre uma postura corporal e a meditação, basicamente porque esta relação não é dada por meio de alinhamentos, conhecimentos de anatomia e posturas desafiadoras. Quem não entende isso realiza a prática postural introspectiva como uma forma de substituir a meditação.

MENTIRA 3: HATHA YOGA

Não é o Hatha Yoga que é uma mentira. Longe disso.

A mentira: o Hatha Yoga é o yoga do corpo, uma disciplina leve, centrada na prática postural, que serve de preparação para o verdadeiro yoga.
A verdade: Hatha Yoga é o yoga do prana. Mas se você pensar que prana é bioenergia, vai continuar achando que é tudo coisa do corpo.

O ponto aqui é que o que todo mundo chama de Hatha Yoga não tem a menor relação com o Hatha Yoga dos nathas — os mestres que realmente criaram a coisa toda.

Não é ficar vesguinho, nem o revirar de olhos de quem não tem paciência.
É shambhavi mudra. 
Mas você não conhece isso porque acha que Hatha Yoga é
só asana e que mudra é aqueles paranauê que se faz com as mãos.

Se você pesquisar algo sobre Hatha Yoga na Internet, encontrará o seguinte:

  1. É o yoga do corpo;
  2. É um yoga leve e relaxante;
  3. Destinado a pessoas idosas ou sedentárias;
  4. Suas principais técnicas são asanas e pranayamas;
  5. Hermógenes, Iyengar e Krishnamacharya foram grandes mestres de Hatha Yoga.
Sobre estes cinco itens:
  1. O Hatha Yoga é o único yoga com técnicas corporais, mas estas não são as mais importantes. Correto seria dizer que o Hatha Yoga é o «yoga do prana» ou o «yoga da sutilização da percepção» — expressões que obviamente não se limitam ao corpo.
  2. Dizer que o Hatha Yoga é leve e relaxante é reduzi-lo aos seus aspectos corporais, que têm pouca importância nesta disciplina. As técnicas corporais do Hatha Yoga podem ser leves ou podem ser pesadas, podem ser relaxantes ou podem ser estimulantes. Por exemplo, o asana — para ser asana — deve ser realizado sem esforço muscular.
  3. Tradicionalmente, na Índia, o Hatha Yoga destinava-se prioritariamente a jovens. Isto não significa que idosos, sedentários e deficientes não o possam praticar, mas há técnicas que serão difíceis para essas pessoas.
  4. Asanas e pranayamas são importantes, mas nem tanto. Se pudéssemos colocar em números, a importância de asanas e pranayamas somados corresponderia a menos de 4% de toda a disciplina do Hatha Yoga. A prática de meditação, por exemplo, corresponderia a 50% de importância.
  5. Hermógenes, Iyengar e Krishnamacharya nunca foram instruídos por hathayogis — e talvez nunca tenham conhecido um. Hermógenes era um autodidata. Iyengar foi aluno de Krishnamacharya, que era um habilidoso professor de mallakhamb.
E acrescento:
Asana é uma parcela pequena do Hatha Yoga. Sua prática tem como objetivos liberar o fluxo de prana no corpo e produzir silêncio corporal, que é uma das bases da meditação. No Hatha Yoga há várias técnicas mais importantes do que os asanas, como os mudras.

MENTIRA 4: VINYASA

A mentira: vinyasa é uma parte importante da prática do yoga.
A verdade: vinyasa não tem nenhuma relação com yoga.

A versão popular diz que o vinyasa foi transmitido por Krishnamacharya (1888-1989) com base em uma escritura chamada Yoga Kuruntha. 

Pelos trajes e pelo domínio corporal, nota-se que é uma discípula dos
grandes mestres, devotada à busca do silêncio profundo e ao conhecimento
de si mesma. Quantos likes merece essa guerreira?


A realidade diz o seguinte:

  1. O Yoga Kuruntha não existe. Se Krishnamacharya tivesse falado do Hathabhyasa Paddhati, escrito por Kapala Kurantaka (que não era hathayogi), até seria possível discutir o assunto. Eu não entendo por que seria melhor basear sua prática e suas aulas numa escritura fictícia que só você conhece do que em uma que realmente existe, mas isso não é da minha conta.
  2. Krishnamacharya inventou o vinyasa com base em seus conhecimentos de mallakhamb. Não se sabe se houve inspiração na obra de Kurantaka — até onde se sabe, Krishnamacharya nunca foi publicamente questionado a respeito disso.
  3. O suryanamaskar — o vinyasa mais conhecido de todos — foi inventado no início do séc. XX por Bhawanrao Shriniwasrao Pant Pratinidhi (1868-1951), raja (uma espécie de governador) do estado de Aundh (não confundir com Aundh, o bairro de Pune). Foi proposto como um sistema de ginástica, para melhorar a saúde, sem qualquer relação com yoga. Veja o livro «The Ten-Point Way To Health: Surya Namaskars», de 1928.
  4. Não há nada no Hatha Yoga que se assemelhe ao vinyasa. A idéia de uma prática postural dinâmica (conforme defendido por Desikachar, filho de Krishnamacharya, em seu livro «O Coração do Yoga») é exótica e totalmente oposta ao Hatha Yoga. «Asana dinâmico» é a bola quadrada do Kiko.

    «Cadê minha ração, sua xexelenta?
    Vai ficar só nos vinyasa aí, vai é?»

  5. A popularização do vinyasa como prática de yoga é um efeito da popularização dos sistemas de ginástica mística e da idéia do yoga como prática corporal.
  6. O Ashtanga Vinyasa Yoga, sistema criado por Pattabhi Jois — que era aluno de T. Krishnamacharya — é uma tentativa de aplicar um verniz tradicional (ashtanga, como alusão aos oito passos explicados nos Yoga Sutras por Patañjali) a uma prática de ginástica (vinyasa). Entre os nomes atuais para vinyasa encontramos «flow» e «prática dinâmica». É tudo a mesma coisa.

MENTIRA 5: UMA TRADIÇÃO MILENAR

A mentira: o yoga é uma prática milenar.
A verdade: o «yoga» praticado atualmente não é uma tradição, muito menos milenar. Esse «yoga» tem menos de 100 anos de idade. O Hatha Yoga, que é a fonte de inspiração de todos os sistemas modernos e contemporâneos chamados de yoga, tem aproximadamente mil anos, mas algumas escrituras não passam de seis séculos de existência.

Existem menções ao yoga nos Vedas, livros que provavelmente foram escritos três ou quatro mil anos antes de Cristo (não 10 mil, como dizem por aí). Estima-se que os Yoga Sutras — a primeira escritura destinada a explicar o yoga — tenha sido escrito por volta do ano 200 a.C., o que o caracteriza como uma obra milenar.

O yoga tântrico — o Hatha Yoga — parece ter sido criado por Gorakshanath (alguns preferem Gorakhnath) por volta do séc. IX ou X, o que dá a este yoga exatos mil anos de existência — ok, também pode ser chamado de milenar.

Mas o yoga praticado hoje em dia — o yoga postural, que alguns chamam de ginástica mística —, mal passa dos 100 anos de existência.


A tradição milenar do yoga em edição dos anos 80
— em VHS e Betamax.

A maioria dos métodos populares hoje em dia foi criada a partir da década de 1950 sob a influência da terapia e da educação física, como é o caso do Iyengar Yoga (B. K. S. Iyengar), do Ashtanga Vinyasa Yoga (Pattabhi Jois) e, no Brasil, o Swásthya Yôga (Luiz Sérgio De Rose, aka Mestre De Rose).

São sistemas que não têm nenhuma conexão com os ensinamentos de Gorakshanath e de Patañjali. Trata-se, na verdade, de criações originais de seus respectivos fundadores. Não são tradições, muito menos milenares — e, para dizer a verdade, nem são yoga de fato.

MENTIRA 6: O YOGA É UMA CIÊNCIA

A mentira já está enunciada acima.
A verdade: o yoga não é uma ciência. Todo o esforço de apresentar o yoga como ciência é um esforço para torná-lo aceitável à mentalidade ocidental, que encara a ciência como autoridade suprema.

Embora seja fácil de entender, esta mentira é difícil de esclarecer.

No final do séc. XIX e no início do séc. XX alguns mestres indianos, como Vivekananda (1863-1902) e Yogananda (1893-1952), foram aos EUA para ministrar palestras sobre yoga e vedanta. Em suas falas foram enfatizados aspectos relacionados à saúde, ao bem estar e o próprio yoga foi apresentado como algo científico.

Alguns anos depois, esta visão seria consolidada com os trabalhos de Kuvalayananda (1883-1966) e com seu Kaivalyadhama Yoga Institute, dedicado à pesquisa científica dos efeitos fisiológicos da prática do yoga. 

«Hm… Interessante…»

A ciência moderna é formada ao longo dos séculos XVI e XVII. O advento da medicina moderna se dá ao longo do séc. XIX, como reflexo do desenvolvimento científico observado nos três séculos anteriores. Na prática, estas mudanças colocaram as questões de saúde no centro das discussões dos problemas sociais.

Para se ter uma idéia, reformas de cidades inteiras, como Paris (1853-1882) e Barcelona (1859-1870), foram pautadas nos princípios do higienismo, derivados da medicina moderna, que é a menina dos olhos da ciência moderna.

Logicamente, o yoga só seria aceito no ocidente se ecoasse estas preocupações, se pudesse se somar a esse movimento pela saúde — em resumo, se fosse adaptado. E assim foi feito. 

«Hm… Interessante…»


O problema é que toda adaptação implica perdas.

Tornar o yoga compreensível para o pensamento científico significa extrair e priorizar as partes do yoga que podem ser enquadradas nesse pensamento e descartar todo o restante.

Ainda que haja analogias entre o pensamento científico e o ceticismo dos yogis, toda analogia é uma síntese de semelhanças e diferenças.

E neste caso as diferenças são maiores do que as semelhanças, a começar pelos objetivos: a ciência não está preocupada com a sua libertação e sim com o estabelecimento de critérios objetivos que permitam aos cientistas observar, registrar, medir e analisar os elementos do yoga que podem ser observados, registrados, medidos e analisados com os meios que a própria ciência considera válidos.

MENTIRA 7: O CORPO NÃO É IMPORTANTE

A mentira: a idéia de que o corpo não é um fim em si mesmo conduz à idéia de que o corpo não é importante no yoga. Em seguida repete-se o lema vedantino: «você não é o corpo, você não é a mente». Esta mentira é uma conseqüência da idéia do Hatha Yoga como preparação para o verdadeiro yoga (mentira 3).
A verdade: sim, você não é o corpo, mas você tem um corpo e você vai fazer algo com ele mesmo quando não é necessário fazer nada.

Quem acredita nesta mentira geralmente são professores que passaram mais de uma década dando aulas de ginástica mística, se desencantaram com a moda fitness e tiveram um vislumbre de que «o yoga é muito mais do que isso».

O problema começa quando esses professores buscam o «muito mais do que isso» e não encontram um mestre de yoga capaz de ensiná-los. Por este motivo acabam indo chorar baixinho no ombro de um swami vedantino ou de um monge budista.

Os mestres do Vedanta e do Budismo são excelentes em suas respectivas tradições, mas não são yogis tântricos. Por isso não são capazes de explicar a importância do corpo e das energias sutis na prática da meditação e na busca da libertação. A resposta mais freqüente é:

«Não se preocupe com o corpo, medite. Apenas observe o corpo, não faça nada com ele. A meditação levará à desidentificação e abrirá sua percepção para o transcendente. Assim virá a iluminação. Ah, leia os Vedas também.» 

Leia e tudo acontecerá. Ops, não, péra…


É verdade que a leitura ajuda e a meditação leva à iluminação, mas os tântricos também ensinam o seguinte: se você não incluir o corpo na sua prática, vai demorar pacas.

***
Para finalizar, mais duas palavrinhas:
O objetivo aqui não é desmontar ídolos de barro. 
Ou melhor: o objetivo aqui não é apenas desmontar ídolos de barro, mas colocar alguns temas em ordem.
Quando você compreende a relação (ou falta de relação) entre o yoga e aquilo que você se acostumou a fazer, fica mais fácil decidir como será sua prática daqui em diante. 
Capacidade de decisão é autonomia, é svecchachara, é viveka, é tornar-se lúcido. 
Se você está na escuridão do caos pós-moderno — aquela que diz que tudo é um e que todos os caminhos são válidos —, a solução não é acrescentar idéias, técnicas, métodos, mas simplesmente acender a luz.

***
Sobre este assunto, vale a pena ler também:

Yoga

Yoga é uma filosofia prática originada na Índia muitos séculos atrás. O termo (em sânscrito योग) pode ser traduzido como método ou procedimento, o que remete ao conjunto de técnicas que compõem o que hoje se costuma chamar de yoga.

O Yoga é também uma das seis escolas filosóficas ortodoxas do Hinduísmo e ao mesmo tempo o estado que se pretende atingir através da prática e do estudo de suas técnicas e tradições.

Yoga significa transformar a consciência humana em consciência divina — conforme o vocabulário do Hinduísmo, significa unir Atman (o Eu superior, porém ainda individualizado) e Brahman (o Absoluto, o princípio de todas as coisas). Praticar o yoga significa buscar sua própria essência, imutável e atemporal, algo que independe das oscilações do corpo e da mente.

Om, um dos símbolos do yoga

Entre os tipos de yoga mais conhecidos, os principais são o Raja Yoga e o Hatha Yoga. O Raja Yoga é o yoga sistematizado por Patañjali em seu Yoga Sutras, obra escrita aproximadamente quatrocentos anos a.C. Nesta obra Patañjali divide o yoga em oito angas (partes ou degraus):

1) Yamas são restrições morais que determinam não apenas nossos atos, mas também as palavras e os pensamentos. Conforme Patañjali, o yoga possui cinco yamas: ahimsa (não-violência), satya (verdade, autenticidade), asteya (não cobiçar, não roubar), brahmacharya (contenção, dedicação dos atos ao divino), aparigraha (desapego).
2) Niyamas são princípios ou “observâncias” que regem nossa conduta inclusive com nós mesmos. São eles: saucha (pureza do corpo, da mente e do espírito), santosha (contentamento, gratidão), tapas (disciplina, perseverança), swadhyaya (autoexame, autoestudo), ishvarapranidhana (o reconhecimento de um princípio único e transcendente)
3) Asanas são as posturas físicas do yoga, que têm como objetivo preparar o corpo para os angas seguintes, sobretudo os antarangas, que exigem estabilidade física duradoura
4) Pranayamas são as práticas de controle da respiração e de cultivo do prana (energia vital)
5) Pratyahara é o último estágio das práticas externas (bahirangas), comumente traduzido como retração dos sentidos, visa afastar a consciência do turbilhão de imagens e estímulos do exterior.
6) Dharana é a concentração duradoura da mente, a capacidade de focalizar mentalmente um objeto e manter esta concentração por longo tempo
7) Dhyana costuma ser traduzido como meditação, embora transcenda aspectos comumente associados a esta prática
8) Samadhi é a fusão do indivíduo com o Absoluto, estado em que os pensamentos são neutralizados

Esta divisão clássica do yoga em oito partes também também é conhecida como ashtanga sadhana (ashta=oito; anga=parte; sadhana=prática).

Hatha Yoga

Entre os ramos do yoga, o mais conhecido é o Hatha Yoga (em sânscrito हठयोग). Por estar associado às práticas físicas de asana (posturas) e pranayama (exercícios de controle da respiração), o Hatha Yoga é também conhecido como “yoga do corpo”. Tal associação não é totalmente equivocada, embora isto leve muitas pessoas a acreditar que o objetivo do hatha yoga é o aprimoramento físico. “Yoga do corpo” é expressão que deve ser compreendida cuidadosamente e que reflete apenas o ponto de partida para a longa jornada para a descoberta do Eu.

Padmasana, uma das posturas mais importantes do yoga

Tradicionalmente, o Hatha Yoga é constituído de disciplinas éticas e morais, posturas físicas, procedimentos de purificação (shatkarma ou kriya), selos corpóreos (os mudra, que combinam posturas, visualizações e travas corpóreas), respiração yogi (pranayama) e meditação.

Conforme a anatomia esotérica do yoga, o corpo possui sete chakras ou (centros de energia vital). O bom funcionamento desses centros garante a saúde física, mental e emocional. Estes chakras são ativados pela respiração, pela alimentação, pelos movimentos e posturas físicas e pela meditação. Um dos objetivos do Hatha Yoga é garantir que essa ativação se dê da forma mais natural e eficiente possível. Por este motivo, muitas das práticas do Hatha Yoga visam permitir a melhor absorção do prana (energia vital presente na natureza) e a livre circulação dessa energia pelo corpo.

Representação simbólica dos principais chakras

Segundo a tradição tântrica, donde se originou o Hatha Yoga, a maior parte do prana é recebido pelo corpo através da respiração. O prana é absorvido por dois canais cujo início coincide com as narinas. Estes canais são chamados nadis; eles fazem o prana descer até o primeiro chakra, situado no períneo e chamado muladhara. A boa saúde deste primeiro centro de energia faz com que o prana ascenda para os outros chakras através de um canal de energia chamado sushumna. Em pessoas normais, o prana chega livremente ao primeiro chakra. Raras pessoas no entanto conseguem realizar a ascensão do prana até o último chakra, o sahasrara, situado no topo da cabeça. Um dos objetivos do hatha yoga é permitir que o prana flua naturalmente por todo o corpo e ascenda até o sahsarara, o que, conforme explica a tradição, despertaria poderes adormecidos e levaria o indivíduo à libertação (moksha) de suas amarras mundanas e à percepção de sua verdadeira essência.

*

Nota

Modernamente, o Hatha Yoga tem sido associado a práticas leves e brandas que têm como objetivo tornar o corpo mais leve e flexível e descansar a mente. No entanto, isso não corresponde à realidade e às origens do Hatha Yoga. Como dito acima, o objetivo do Hatha Yoga não depende do tipo de prática física, não depende desta ou daquela postura, mas de que forma essa prática física integra-se ao sadhana, isto é, à prática do yoga como um todo.

Via de regra, pode-se estabelecer que se o método proposto reserva um tempo significativo para a prática de asanas, então trata-se de Hatha Yoga. Conclui-se, assim, que a maior parte dos métodos modernos são, na verdade, variações do Hatha Yoga que, portanto, podem ser melhor compreendidas à luz da prática e do estudo da tradição de Svatmarama, Gheranda, entre outros mestres nathas que sistematizaram o Hatha Yoga.

Aulas

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Como curei meu vício em ginástica mística

Monges shaolin treinando num ashram indiano. Não… péra…


Eu fazia 108 surya namaskar a cada solstício. 

Revirava a Internet em busca de «posturas desafiadoras». Desenvolvi um estudo dos principais shastras do hathayoga com o objetivo exclusivo de catalogar e comparar as posturas contidas neles — mas não pelos motivos certos.

Comprei livros com 200, 300, 400 posturas e os usei para construir minha prática diária. Estudei anatomia e alinhamento — eu cheguei a pensar em comprar um tapete quadriculado. Participei de workshops e «aulões» de asanas. Dei aulas em academias de ginástica e «spas holísticos». Acreditei que isso tudo me ajudaria a realizar yoga. Acreditei que isso tudo ajudaria outras pessoas a realizar yoga.

Minha prática de samyama, que já era ruim, piorou nesse período. Os vrittis aumentaram.

Apesar disso, eu continuava acreditando que aquilo tudo me levaria a realizar yoga. Ou melhor (ou pior): eu sabia que aquilo tudo era o máximo que o yoga poderia proporcionar.

Assim como aquele instrutor norte-americano famosão (não me peça o nome), eu também acreditava que ser um yogi era fazer utthita hasta padangusthasana com máxima extensão das pernas. 

Utthita hasta padangusthasana. 
Para alguns especialistas, requisito para ser yogi. 

Ah, sim, eu conseguia fazer utthita hasta padangusthasana com máxima extensão das pernas. Tinha um bom domínio do corpo. Mas permanecer em silêncio num simples sukhasana por mais de 10 minutos era uma tortura.

Ao fechar os olhos só me vinham imagens de vinyasa suado e da prática postural geometrizada e pensamentos de que eu deveria voltar a transpirar e parar com aquela bobagem de «sentar em silêncio».

Como praticante, a perspectiva mais interessante era a de comprar o «Tratado de Yôga» e passar o resto da vida tentando reproduzir com perfeição as 2000 poses desse livro e depois seqüenciá-las em coreografias e depois ficar azul de tanto treinar e virar o Shiva dançarino e depois tentar alguma coisa com o Guiness (o livro, não a cerveja) e depois destruir o mundo para recriá-lo à minha imagem e semelhança num novo mundo em que todos se alfabetizariam com «Luz na Vida».

Como professor, o mais longe que eu chegaria seria produzir currículos no Word impressos com a tinta no fim, feitos com fonte Times New Roman tamanho 16 em negrito, e passar as tardes os entregando em academias de ginástica e concorrer com professores de educação física e crossfit.

Fui salvo desse destino aterrador quando me deparei com esta frase de Nisargadatta Maharaj:

O que não o leva a moksha necessariamente o afasta de moksha.

A ficha não caiu imediatamente porque quem está bebaço de tanto fazer ginástica precisa estacionar, retornar ao sedentarismo por algumas semanas e então recobrar a lucidez que permite compreender frases inteiras. Quando recuperei minha saúde mental, a ficha caiu e eu finalmente enxerguei.

Quatro luzes se acenderam diante de mim, quatro luzes intensas que me tiraram de um lugar pestilento e nauseabundo que eu vou chamar de — pausa dramática — Fabuloso Mundo da Ginástica Mística — mas que para maior realismo também poderia ser chamado de Cracolândia do Wellness.

Eis as quatro luzes:

1. A busca por alinhamento, fortalecimento e alongamento é um  obstáculo para a prática de yoga. 

Quanto maior o foco nestas coisas, menor o foco em samyama. 

É claro que é bom ter uma boa postura, ser forte e ter um corpo flexível, mas estas três qualidades não têm relação com o yoga. 

Yoga mat para quem gosta de sofrer de TOC.

Como saber se algo tem ou não relação com yoga? É simples: se é algo que você pode aprender numa faculdade de educação física, não tem relação com yoga.

2. No yoga, todo desafio é contraproducente. 

Quero dizer, o ponto mais alto que se pode atingir por meio de um desafio é o… da superação do próprio desafio — óbvio, não? 

Mas se você tem o QI maior que 17 percebe facinho que nenhuma técnica do hathayoga tem como objetivo desafiá-lo no que quer que seja, mas sim conduzi-lo ao samyama. E o primeiro que vier aqui dizer que «tapasya é uma espécie de desafio» ganha uma bolsa de estudos para o próximo Teacher Training do Bikram Choudhury numa casa da luz vermelha.

3. A prática isolada de asana faz com que o asana seja reduzido a um simples exercício isométrico. 

Asana só é asana se estiver inserido numa linha que conecta o indivíduo à prática de laya. 

Ah, você não pratica laya… Ok… 

Mas que pelo menos o asana aponte para laya, né? Que pelo menos o asana diga pra você: 

Ó, quando você estiver aqui comigo, permanecendo em silêncio interior e exterior por uns 10 minutos, aí eu vou segurar na sua mão e seguiremos juntos naquela direção ali.

Se o asana não lhe diz isso, não é asana.

A perfeição do asana, por Shivabala Yogi.


4. É possível, sim, dedicar-se à ginástica mística sem prejudicar sua prática de yoga. 

Entender este ponto me trouxe a certeza da libertação. 

Sabe aquele lance de «a César o que é de César»? Então. 

Quando você se cura da idéia de que ginástica mística pode iluminar, você consegue de fato se dedicar à ginástica mística e obter seus benefícios e também consegue buscar os meios que vão levar você ao entendimento real de si mesmo — porque, lamento dizer, ginástica mística não o conduz a ao entendimento real de si mesmo. (brincadeira, não lamento não)

Então, se você entende isso você pode fazer as duas coisas sem problema algum. Você pratica yoga logo ao acordar e no final da tarde você pratica ginástica mística. Ou vice-versa.

A chave é não misturar essas duas coisas, não se iludir que elas podem ser misturadas, não inventar moda, não imaginar que o yoga vai deixar você fitness, não imaginar que a ginástica mística vai deixar você iluminadão e, acima de tudo, não ser o tocador de didgeridoo dos pinéis delirantes dizendo «você já é a felicidade que você busca» enquanto cinco alunos sofrem com o desafio dos 108 suryanamaskar num ambiente impregnado com aquele som abominável. 

Tem limite pra tudo nesta vida.

Não.

***
Depois destas quatro luzes eu não parei de fazer ginástica mística. Gosto de suryanamaskar, gosto de «dar uma alongada», gosto de plantar bananeira.
Mas como diz o meme: não é vício se eu paro quando eu quiser. E principalmente: não é vício se eu sei exatamente qual o bem e qual o mal aquele hábito proporciona.

Tudo, afinal, se resume a viveka: discernir, diferenciar, distinguir, discriminar, «seja o sim sim e o não não» — ou em termos mais comuns para a galera do yoga: não alimentar a idéia de que o eterno é finito, que o puro é impuro, que alegria é dor e que o Ser é não-ser (Yoga Sutras, II:5). 

E, claro, não alimentar a idéia de que ginástica mística é yoga.

Esqueça a sua verdade

A minha verdade vale. A sua não.

Começo este longo texto explicando o que é «a sua verdade». Você já deve ter lido ou ouvido isso, por isso a explicação será breve e fácil.

Às vezes «a sua verdade» aparece como «a minha verdade» ou como «cada um tem a sua verdade», o que dá no mesmo. Estas três expressões significam a mesma coisa.

A idéia essencial é a seguinte:

Todas as pessoas são diferentes, têm convicções distintas e todas, sem exceção, têm o direito de ter essas convicções respeitadas. Eu tenho a minha verdade, você tem a sua verdade, cada um tem a sua verdade e todos nós devemos viver em paz e harmonia respeitando as verdades dos outros.

Trata-se, no fim das contas, de algo que também pode ser chamado de «respeito mútuo a verdades individuais».

Se você não percebeu de primeira que esta idéia é falsa e catastrófica, então este texto é para você. 

Prossigamos.

1. Não existe «minha verdade». Não existe «verdade pessoal».

Por definição, a verdade não é algo subjetivo ou relativo. É objetivo e absoluto.

Dizer que uma verdade é subjetiva e relativa é um oximoro, é uma contradição em termos, é o triângulo redondo, é a queda para o alto, é o flagrante retroativo.

Não há qualquer sentido numa verdade que é delimitada pelas idéias e convicções de uma única pessoa ou de um grupo de pessoas. 

«Verdade subjetiva e relativa» é opinião, visão pessoal, versão, interpretação ou, em casos mais graves, transtorno mental. Se é verdade, tem validade universal. Se não tem validade universal, não é verdade.

2. Mas e os índios de uma tribo isolada? Eles não têm a verdade delas? Isso não deve ser respeitado?

Respeitado, sim e apenas na mesma medida que se deve respeito a qualquer ser humano. Aceito, não necessariamente.

Pensemos, por exemplo, nas tribos que têm o costume de enterrar vivas as crianças que nascem defeituosas. A crença é de que estas crianças trazem má sorte para a tribo. É a «verdade» daquela tribo, algo válido no círculo estrito daquela tribo.

Antropólogos e outros especialistas devotos da idéia da «minha verdade» dizem que o homem branco não deve interferir nesse costume de executar crianças defeituosas.

A idéia de não-interferência e o costume abominável de execuções sumárias só sobrevivem quando a «minha verdade» exclui o contraditório, isto é, quando a «minha verdade», limitada e pessoal, recusa a simples possibilidade de existência de «outra verdade». 

Em outras palavras, o índio adulto que enterra viva a criança defeituosa e o antropólogo que acha isso aceitável não consideram que aquela criança também tem o desejo e o direito de viver, exatamente como o índio e o antropólogo têm.

Em resumo, a importância dada às «verdades individuais» resulta na exclusão de «outras verdades» e também de verdades universais.

3. Mas e daí? E o yoga?

Sim, voltemos ao yoga, mas coloquemos o seguinte com base no que foi dito antes: uma verdade só é uma verdade porque sobreviveu ao teste da realidade e foi colocada à prova com inúmeros contraditórios.

Por exemplo: eu digo que o céu é azul e você responde

Esta é a sua verdade. A minha verdade é que o céu é verde.

Há dois cenários possíveis a partir daqui.

No primeiro, eu saio andando afirmando que o céu azul, você sai andando numa outra direção afirmando que o céu é verde. Ficamos ambos com o respeito mútuo às «verdades individuais», que são meras expressões de convicções pessoais. Fim.

No segundo cenário, eu e você passamos a analisar as duas «verdades», tratando-as não como axiomas, mas como hipóteses. Isto nos leva às seguintes questões:

a. O que é cor?
b. Como funciona a percepção das cores?
c. O que é a cor azul?
d. O que é a cor verde?
e. O céu é um objeto cuja cor pode mudar? Se sim, por quais motivos?
f. Ou aquilo que se vê no céu tem uma cor constante? Esta cor é azul ou verde?
g. O espectro de cores possíveis do céu exclui a cor verde?
h. É possível que um objeto naturalmente azul seja percebido como verde (ou vice-versa)? Se sim, por quais motivos?
etc.

Independentemente do que você considere 
ser a «sua verdade», a verdade existe.

Agora sim, o yoga.

Ou melhor, ainda não. Falta um ponto antes de tratarmos da «sua verdade» no yoga.

4. Da validade e das implicações da expressão «minha verdade».

A questão aqui é a linguagem.

Se, como vimos no item 1, «minha verdade» é uma expressão sem sentido e necessariamente contraditória, usá-la com convicção é sinal de que o problema não está apenas na percepção e no entendimento da realidade.

Quem usa a expressão «minha verdade» a sério também tem problemas também no uso da linguagem.

Nas situações em que esta expressão é usada, fica claro que «minha verdade» é uma forma elegante e eufemística de dizer «minha mentira», «meu delírio», «minha ilusão», «meu faz de conta».

Pense numa criancinha de 3 anos de idade.

Quando você é uma criancinha de 3 anos de idade, você faz de conta que é um super-herói. Você não é um super-herói, você apenas faz de conta que é um.

Não é como um fingimento. Fingimento é aquilo que o ator faz num filme. A criança não finge, ela faz de conta. Parte de sua consciência sabe que ela não é um super-herói, outra parte acredita que ela é. E é por isso que a criança brinca de ser um super-herói com convicção, o que é o mesmo que dizer que a criança anda no limite entre a brincadeira e a alucinação. Se parecer assustador, substitua «alucinação» por «sonhar acordado».

Quando você é um recém-nascido o mundo consiste em cocô, seios e vultos e seus recursos lingüísticos se limitam a duas coisas: abrir o berreiro quando aqueles três elementos trazem algum desconforto físico e ficar quietinho fazendo sons fofinhos quando eles trazem conforto físico.

Aos 3 anos de idade o mundo é mais complexo. Embora nessa idade ainda exista a idéia de que o mundo é limitado aos próprios interesses, a realidade já deu mostras de que é um pouco mais complexa: um tombo mostra que perder o equilíbrio e bater o joelho no chão dói, o que exige da criança cada vez mais atenção ao sair correndo. Ela quer correr, ela quer voar, mas o chão e a força da gravidade dirão que há limites para estas coisas.

Quando a criança de 3 anos faz de conta que é um super-herói, isto é possível porque um adulto sempre está por perto para acompanhar a brincadeira. Esse adulto pode participar da «verdade da criança» ao ponto de fazer de conta que é um vilão, mas não ao ponto da criança achar que ela é um super-herói de verdade e querer saltar pela janela achando que vai voar.

«Minha verdade» é algo tolerável em crianças. 
Em adultos que se dedicam ao ensino de yoga, é um 
indício de transtorno mental ou de pilantragem. 

À medida que cresce, a pessoa perceberá que todo faz de conta oferece riscos, inclusive na adolescência e na idade adulta.

Aos 3 anos de idade o risco do faz de conta era de querer saltar pela janela, o que se resolve facilmente com a presença de um adulto. A criança de 3 anos de idade tem diante de si a perspectiva de brincar de faz de conta por mais uns 5 ou 6 anos (varia conforme a criação, claro). Quem já é adulto não tem.

Se você brinca de «minha verdade» aos 3 anos de idade, usando o vestido da Princesa Elsa, você é fofinha e engraçada e seus pais ficam tranqüilos porque sabem que um dia você vai deixar de ser criança e vai entender as diferenças entre realidade e imaginação.

Se você brinca de «minha verdade» aos 30 anos de idade, você não é fofinha e engraçada, você está sendo retardada ou pilantra.

E é aqui que podemos finalmente voltar ao yoga.

5. Afinal, qual o problema da «minha verdade» no yoga?

O primeiro problema é que não existe «a minha verdade» no yoga. Existe a verdade do yoga.

Se o que você considera «a minha verdade» é diferente da verdade do yoga, então não é verdade alguma. O contrário de verdade é mentira, auto-engano, ilusão, delírio. Se fosse uma criança, poderia ser um faz de conta, mas agora estou falando de yoga e de adultos.

Você pode duvidar do que eu disse, claro. Por exemplo:

Mas existe, sim, a minha verdade. Eu faço vinyasa e sinto a introspecção, o fluxo das energias sutis, eu me conheço, me aceito e me compreendo quando pratico vinyasa. Por que excluir isso? Por que isso seria um delírio?

O que você sente ao praticar vinyasa ou qualquer outra coisa sem relação com o yoga não é um delírio. Aconteceu, é real. Mas não é a sua vivência que está sendo discutida. Aliás, não se trata de você, não se trata de nada que possa ser identificado como «seu».

O que está sendo discutido é a validade disso COMO YOGA.

A questão aqui é idêntica àquela discussão sobre a cor do céu.

O céu é azul ou é verde? Se houver qualquer dúvida, se houver qualquer choque entre «minha verdade» e «sua verdade», é necessário que o choque realmente aconteça, pegue fogo, que as «verdades» saiam no tapa e sejam trazidas novamente para o campo das hipóteses e das possibilidades e sejam investigadas até que se possa concluir algo a respeito da cor do céu.

Claro que isto depende do grau de interesse em chegar a alguma conclusão.

Pode não ser muito importante para este mundo que haja pessoas que crêem que o céu é azul, outras que crêem que o céu é verde ou bege ou rosa-choque. Pode não ser muito importante que haja pessoas que crêem que yoga é ginástica e que até o ensinam desta forma. Novamente, é a vivência delas, é a experiência delas.

Um céu imaginário desenhado com dois lápis diferentes por uma criança de 3 anos num papel sulfite pode ser azul e verde ao mesmo tempo. Mas o céu não pode ser azul e verde ao mesmo tempo e de fato.

De modo análogo, o yoga não pode ser ginástica e prática de samadhi ao mesmo tempo pelo simples fato de que ginástica e samadhi pertencem a planos diferentes da realidade. É como ser um axioma e um abacate ao mesmo tempo. 

A afirmação da «minha verdade», que diz que vinyasa intensifica o fluxo das energias sutis, só é possível mediante a exclusão discriminatória da verdade estabelecida pelos mestres — uma turma que ao longo de muitos séculos afirmou uma única e mesma coisa a respeito do yoga, algo que Vyasa, inspirado por Patañjali, expressou com força e pureza inigualáveis:

Nota-se que não sei fazer GIFs animadas.


O segundo problema da «minha verdade no yoga» é uma conseqüência direta do primeiro: se «minha verdade no yoga» é algo desprovido de sentido e desconectado do yoga, por que raios alguém iria querer usar isto como base para realizar e ensinar yoga?

Na realidade, este é o único problema.

Se a «minha verdade» fosse realmente uma escolha individual, restrita à ermida que a pessoa escolheu para si e apenas para si, eu nem teria começado a escrever este longo texto.

O problema é que quem acredita na «minha verdade» não a quer fechada numa ermida.

Quem acredita na «minha verdade» quer que a «minha verdade» seja sua também, seja nossa, seja de todos. Quer o coletivo, quer as ruas, quer o viral, quer seguidores e clientes.

Quem acredita na «minha verdade» quer que ela seja transformada num novo estilo, num novo método, que sempre, sempre, sempre vai receber o nome de «yoga» e vai virar um curso online, ainda que a simples existência desse novo método baseado na «minha verdade» ignore cinco verdades simples cuja lembrança invalidaria todas as «verdades inidividuais e subjetivas»:

I. O yoga tem uma origem
II. O yoga tem criadores
III. O yoga tem mestres
IV. O yoga tem tradição
V. O yoga tem linhagem

Quem reconhece estas cinco verdades simples abandona qualquer idéia ou pretensão a respeito de «minha verdade» por uma razão muito simples: no yoga não há margem para «meu», para escolhas pessoais e para visões pessoais.

6. Mas eu acho que a «minha verdade» é tão boa que eu quero ensiná-la às pessoas. É a minha contribuição. O yoga me fez tão bem e me trouxe coisas tão boas que agora eu quero compartilhá-lo.

Quem diz isso sem ter um guru não quer «compartilhar» porcaria nenhuma.

«Sua verdade»? Não, obrigado.

Se você não tem um guru e mesmo assim quer «compartilhar a sua verdade», o que você quer na realidade é recuperar sua grana e pagar suas contas. No fundo, você sabe que o que você aprendeu é um troço tão misturado quanto um mercado público em Istambul e que não há a menor chance disso ser vendido como algo puro, livre de influências alienígenas.
Você colocou muita grana num curso de formação que não lhe ensinou nada sobre samadhi, unmani, laya, dvadashanta e prana bandha porque as lições sobre ginástica postural e anatomia tomaram 90% do tempo. Os outros 10% do curso foram ocupados com um bônus de «yoga em dupla», leitura de «O Coração do Yoga», abraços coletivos e lágrimas porque «o módulo deste fim de semana foi lindo».

Para piorar, hoje em dia qualquer pessoa pode produzir e vender «sua verdade» no yoga fazendo um curso xexelento de 200 horas de ginástica mística e colocando fotos bonitas numa rede social. Isto significa que, para destacar-se de outras «minhas verdades», essa «sua verdade» precisará ser maquiada com os vernizes do yoga verdadeiro. Mas isso nem é tão difícil assim.

Me empresta um incenso aí?
Patañjali nunca disse nada sobre a relação entre a prática do samadhi e a prática de natarajasana de biquini numa praia do Caribe, mas isso não tem importância para o otário — ops! — o leigo pagante. Ele se baseará nas informações circulantes para (tentar) diferenciar um yogi que ensina samadhi de um falsário que ensina «minha verdade» como se fosse o yoga de Patañjali ou dos nathas.

A referência popular de yogi, pelo menos desde 1960, é o sujeito que consegue fazer a postura da árvore com os olhos fechados sem ser estátua humana em pracinha de cidade turística, que consegue plantar bananeira sem ser capoeirista de vídeo para turista ou que consegue fazer ponte ser uma pré-adolescente que faz balé depois do inglês, da natação e do Kumon. Se o sujeito realiza pelo menos uma dessas proezas, é um yogi de verdade. Pelo menos é o que dizem.

7. Muita arrogância sua dizer que o yoga que eu ensino e pratico não tem valor. Oras, tudo é yoga!

Been there, done that.

Quem sofre da autolatria delirante da «minha verdade» em algum momento tira essa carta da manga: tudo é yoga.

NONONONONONONONONO.
O raciocínio é simples: a «minha verdade» não vale como yoga por si mesma, mas ela vale como yoga por causa do universalismo do yoga. Em outras palavras, se tudo é yoga, «minha verdade» também é.
O otário — ops! — o leigo pagante cai nessa porque, embora não compreenda muito bem o que significa «tudo é yoga», sente que a frase é muito profunda, tão profunda que um leigo pagante tem mais é que ficar quieto, tirar a carteira do bolso e aceitar frases profundas porque em algum momento a verdade contida ali se revelará e ele deixará de ser leigo.
Esta é bem fácil: se tudo fosse yoga, nada seria yoga.
Se tudo fosse yoga, não existiria nada fora do conjunto de todas as coisas que pudesse ser identificado como yoga. Se tudo realmente fosse yoga, sequer haveria sentido em usar o termo yoga para referir-se ao yoga. 
Poderíamos falar de uma maçã — isso também é yoga. Ou de uma moça fazendo natarajasana de biquini no Caribe, de um cachorro Dachsund, de uma vomitada no final da balada, de uma Lamborghini Diablo, de um sanduíche de queijo de búfala, de um crime de estelionato, de uma garrafa de pisco ou de um índice da bolsa de valores. Se tudo é yoga, cada uma dessas coisas também é.

Conclusão:
Quem diz a sério que tudo é yoga precisa de ajuda psiquiátrica.
Quem diz só de brincadeirinha que tudo é yoga tem uma pilantragem escondida na manga.

Porque é óbvio que nem tudo é yoga.

E se é óbvio que nem tudo é yoga, provavelmente deve ser mais adequado usar nomes diferentes para referir-se a coisas essencialmente diferentes como a prática milenar do samadhi e a prática de alongamento místico com trilha sonora da Enya e incenso barato. 

8. Em resumo: chega.

Enfie «sua verdade» no lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Para os yogis a «sua verdade» vale tanto quanto aquilo que você deixa no vaso de seu banheiro todos os dias.

A «sua verdade» no yoga só tem importância 
se ela for igual à verdade dos mestres. 

Se não ficou claro até aqui, coloco em formato de lista numerada e negritada e com fundo bonitinho, porque eu sei que tem gente que só vai ler esta lista mesmo:

***

Para finalizar, lembre que no yoga só há três condições: ou você é guruyogi ou você é um aprendiz orientado por um guruyogi ou você não é nada.

Mas não desanime. Ser nada no yoga não significa que você seja um imprestável. 

Você continua tendo condições de ser uma boa pessoa, um bom profissional, um bom amigo, um bom professor de alongamento, um bom cuidador, um bom criador de chinchilas, um bom influencer com vasos e vídeo 4K, mas não um yogi.

Acervo



As listas abaixo estão em ordem alfabética pelo título e seu objetivo é meramente cultural e obviamente sem fins lucrativos. Trata-se de uma pequena contribuição pessoal para difundir bons livros e boas leituras sobre o yoga.

Os livros aqui disponibilizados foram encontrados na Internet — a maioria veio de outros sites de ebooks. Se por algum motivo alguém se sentir prejudicado com algum livro aqui disponibilizado, entre em contato comigo por email para que o arquivo seja retirado desta lista. Aos que baixarem os arquivos sugiro que adquiram os livros em boas livrarias ou sebos, divulguem-nos e divulguem os seus autores.

Se quiser sugerir algum título ou solicitar um e-book específico que não aparece nesta lista, entre em contato comigo. Caso algum e-book não funcione ou o download apresente problemas, por favor me avise. Deixe um comentário nesta página ou mande-me um email:

templodoyoga @ gmail . com

Muito obrigado a todos.

Yoga e hathayoga

  1. Bhagavad Gita
  2. Bhagavad Gita, sânscrito e inglês, comentado por Annie Besant
  3. Diferenças entre rajayoga e hathayoga
  4. Gheranda Samhita
  5. Gorakhnath and Kanphata Yogis, de George Weston Briggs
  6. Goraksha Paddhati 
  7. Goraksha Shataka
  8. Hatha Yoga Pradipika
  9. Insight into Religion and Meditation, de Surajnath
  10. Shiva Sutra
  11. Yoga Sutras, tradução e análise de Lilian Gulmini
  12. Yoga Sutras, tradução e comentários de Carlos Eduardo Barbosa
  13. Yoga Sutras: Como conhecer Deus, traduzido e comentado por Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood
  14. Yoga Vishaya, de Minanath


                          Pré-hathayoga

                          1. Yogic Sthula Vyayama
                          2. Yogic Sukshma Vyayama, de Dhirendra Brahmachari


                          Ginástica indiana e criações modernas inspiradas no hathayoga

                          1. 608 Yoga Poses, Dharma Mittra
                          2. Asana, Pranayama, Mudra, Bandha, de Satyananda Saraswati
                          3. Kundalini Tantra, de Satyananda Saraswati
                          4. Light on Yoga, de B. K. S. Iyengar
                          5. O Poder da Serpente, de Arthur Avalon
                          6. Yoga and Kriya, de Satyananda Saraswati
                          7. Yoga Body, de Mark Singleton


                            Outros

                            Vamos estudar anatomia?

                            Sim, vamos, mas vamos estudar também nutrição, fisiologia, climatologia, microeconomia, bioquímica, psicologia… Que tal? Se anatomia é fundamental para o praticante de yoga, todas estas ciências também são, certo?

                            Vamos às explicações.

                            Anatomia é tão necessário para o praticante de yoga quanto qualquer outra ciência moderna. Numa escala de 0 a 100, a importância das ciências modernas para o praticante de yoga é 0 (zero). Em outras palavras, não é necessário estudar anatomia para praticar yoga.

                            Mas ter algum conhecimento de anatomia não ajuda na realização das posturas corporais? Claro que ajuda, mas desde quando praticar yoga consiste em realizar posturas corporais?

                            A partir daqui o leitor talvez comece a entender uma coisa importante: saber se uma ciência X ou uma disciplina Y são necessárias para o praticante de yoga depende de compreender o que é o yoga. Se a essência do yoga estivesse na realização de posturas corporais, sim, seria importante conhecer o corpo em seus mínimos detalhes, inclusive com conhecimentos de anatomia.

                            Donde a pergunta: qual relação o yoga tem com as posturas corporais? Resposta: pouca, quase nenhuma.

                            Se o yoga consiste em meditar, todo o conhecimento de anatomia de que você precisa é aquele necessário para você sentar-se com conforto, respirar calmamente e meditar — coisas que uma criança tem condições de fazer sem ter estudado anatomia. Todos os grandes mestres yogis dos últimos séculos, desde Gorakshanath até Ramana Maharshi, também conseguiam fazer essas coisas sem nenhum conhecimento de anatomia. Em resumo, para realizar yoga não é necessário conhecer anatomia.

                            Vou além: estudar anatomia é um obstáculo para a prática de yoga.

                            Pensemos: se conhecimentos de anatomia não são necessários para realizar yoga, por que alguém interessado em yoga estudaria anatomia? Certamente não para realizar yoga, mas para realizar posturas com perfeição anatômica. Este objetivo, claro, pressupõe que a realização de posturas com perfeição anatômica é mais importante do que realizar yoga. Em pouco tempo, o praticante estará mais preocupado em explorar os limites anatômicos de seu corpo (por exemplo, ampliar a torção de um matsyendrasana) do que em realizar asana para encaminhar-se para o samyama. Em outras palavras, o que era um anga do yoga perde seu sentido original e seus aspectos mais superficiais passam a ser os mais importantes na definição e no direcionamento da prática — que, a esta altura, não merece mais ser chamada de yoga.

                            Um detalhe curioso: verdadeiros hathayogis não se lesionam; «yogis modernos», que têm profundos conhecimentos de anatomia, às vezes se lesionam. (Observe a quantidade de instruções sobre anatomia são disponibilizadas hoje em dia com o subtítulo «como prevenir lesões no yoga».)

                            Como é possível que os verdadeiros hathayogis, sujeitos que vivem isolados em ashrams ou até mesmo em cavernas e florestas praticando hathayoga, afastados de todo conhecimento ocidental sobre anatomia, como é possível que esses sujeitos não se lesionem? E como é possível que aqueles «yogis modernos», que são profundos conhecedores de anatomia, acabem se lesionando ao realizar algumas posturas? Não deveria ser o contrário?

                            O que ocorre aqui é parecido com os tristes casos de afogamento em praias e rios: quase todas as vítimas de afogamento eram pessoas que sabiam nadar. Se a natação é entendida como um meio de expor-se a situações perigosas sem risco algum, então o sujeito acreditará que é dotado de um poder suficiente para essa exposição. E é aí que tragédias acontecem.

                            No yoga acontece algo semelhante quando se trata de estudar anatomia. O conhecimento de anatomia traz embutida a noção de que é possível «ampliar limites» e de que isso é bom e importante no yoga. E é aí que o sujeito se lesiona. Observe que a esmagadora maioria dos estudantes de anatomia em escolas e «studios» de yoga busca esses conhecimentos não porque quer entender melhor o próprio corpo, mas porque quer «intensificar o asana» sem se sujeitar aos riscos que essa intensificação oferece ou porque — no caso de um curso de formação — quer orientar pessoas que têm interesse nisso. Oras bolas, por que seria necessário «intensificar o asana»? O que isso tem a ver com yoga?

                            *

                            Perguntas e respostas relacionadas ao tema:

                            1) Então, não devo estudar anatomia?
                            Se seu interesse é em yoga, você deve estudar yoga, não anatomia.

                            2) É ruim estudar anatomia?
                            Não. É bom estudar anatomia — sem ironias. É sempre melhor conhecer seu corpo do que não conhecê-lo. Recomendo que todos estudem um pouco de anatomia, assim como recomendo que todos estudem um pouco de fisiologia, de nutrição etc. — enfim, ciências que têm relação com seu corpo, com sua mente etc. Mas, novamente, esses conhecimentos nada têm a ver com yoga. Se você busca esses conhecimentos com o objetivo de se tornar um yogi, você está se enganando e se afastando do yoga.

                            3) Faço um curso de formação que inclui aulas de anatomia. Estou jogando meu dinheiro fora?
                            Sim, está. Cursos de formação que incluem aulas de anatomia baseiam-se na idéia obviamente falsa de que tal conhecimento é necessário não apenas para realizar yoga como também para ensinar yoga.

                            4) Devo parar o curso?
                            Não sei. Um curso de formação que inclui aulas de anatomia parte do pressuposto de que o futuro instrutor atenderá alunos que buscam «aulas de yoga» da mesma forma que algumas pessoas buscam aulas de pilates, de alongamento ou mesmo de musculação. Estas pessoas terão interesse em conhecimentos de anatomia porque já chegam com a idéia de que isso é importante para a prática de yoga. Se você quer recuperar seu investimento, provavelmente será necessário concluir o curso e trabalhar por um tempo atendendo esses alunos. Em resumo, você precisará continuar se enganando por algum tempo.

                            5) Você só teve condições de escrever este texto porque estudou anatomia. Isto não prova que para desenvolver-se no yoga é necessário conhecer anatomia? Não é possível dispensar um conhecimento que não foi assimilado.
                            Sim, estudei anatomia, mas não tanto quanto os praticantes e instrutores de yoga interessados em «alinhamento de asanas», «ajustes e correções de asanas», «asanas musculares», «asanas para quem tem escoliose» etc. Garanto ao leitor que meus conhecimentos sobre anatomia não são maiores do que os de um adolescente recém-saído de um bom ensino médio. A questão aqui não é conhecer anatomia, mas conhecer yoga.

                            Yoga para quem nunca praticou yoga

                            Você ouviu falar que yoga faz bem para o corpo e a mente, já viu médicos recomendando a prática de yoga, já viu amigos falando maravilhas sobre isso, mas não sabe exatamente o que é yoga e nem por onde começar? Seus problemas acabaram.

                            Vamos lá:

                            1) O que é yoga?

                            Yoga é meditação.

                            Embora modernamente meditação seja um termo bastante elástico, podemos ser um pouco mais específicos: praticar yoga é praticar meditação com o objetivo de ver e compreender quem você é, é o exercício do silêncio interior profundo

                            Muitos mestres de yoga repetem o lema «você não é o corpo, você não é a mente». Por meio do yoga você consegue elevar este lema do simples nível da intelecção (ler e compreender uma frase) ao nível da vivência plena. Avançar na prática do yoga (isto é, na prática da meditação) significa permitir que essa vivência ilumine sua percepção e remova as máscaras que você construiu e se acostumou a usar. Assim como você não é o corpo e não é a mente, você também não é uma carreira profissional, não é um parentesco, não é uma imagem ou um «look», não é uma doença crônica, não é um hábito etc.

                            Sei que para quem nunca praticou yoga, estas palavras podem soar complicadas. Caso isso ocorra, basta retornar ao início: yoga é meditação, nada além disso.

                            2) O que é hathayoga? Não é o mesmo que yoga?

                            Não. Como vimos acima, yoga é meditação.

                            Hathayoga é uma tradição de origem tântrica que tem como objetivo usar disciplinas sensoriais para acelerar o processo da meditação e potencializar seus efeitos. Colocando em termos mais simples (e menos precisos): trata-se da meditação facilitada e potencializada por meio de técnicas corporais, respiratórias e energéticas.

                            Há inúmeras formas de se praticar yoga. Em obras clássicas como o Bhagavad Gita e os Upanishads fala-se da prática do yoga por meio de ritos devocionais, por meio da fé no guru etc. Quase nada disso tem relação com técnicas corporais, respiratórias e energéticas — estes elementos ou rotinas disciplinares são específicos do hathayoga.

                            Em resumo: yoga é meditação; hathayoga é o yoga facilitado e potencializado por meio de técnicas corporais, respiratórias e energéticas.

                            3) Mas e os estilos de yoga que usam e priorizam vinyasa, alinhamentos, anatomia etc.? São técnicas corporais, respiratórias e energéticas, não? Tudo isso é hathayoga, não?

                            Não.

                            Primeiro, vinyasa (posturas do hathayoga realizadas de forma seqüenciada, quase como uma coreografia), alinhamentos, orientações a respeito de anatomia, medicina, aspectos terapêuticos etc. são invenções recentes (meados do séc. XIX até os dias de hoje). Por muitos séculos o hathayoga produziu hathayogis sem precisar destas coisas. Adicionar estas coisas ao hathayoga trouxe dois resultados:

                            1. Elas se tornaram mais importantes do que o yoga, ao ponto de não sobrar quase nada que possa ser reconhecido como yoga nesses «estilos de yoga» (lembre-se do início: yoga é meditação para o conhecimento de si, é o exercício do silêncio interior profundo).
                            2. Os sistemas resultantes dessas adições não têm produzido hathayogis nem yogis. Qualquer «instrutor de yoga» da atualidade está muito mais próximo de um professor de academia de musculação ou de crossfit do que de um yogi, de um grande meditador.

                            Ainda que essas invenções modernas possam ter alguma semelhança com técnicas do hathayoga, elas não foram criadas com o objetivo de realizar yoga e não produzem esse efeito.

                            4) Como posso começar a praticar yoga?

                            Se você entendeu o que é yoga e realmente quer começar a praticar, medite. Leia sobre meditação. Busque informações que possam ajudá-lo a meditar 10, 15, 30, talvez até 60 ou 90 minutos todos os dias. Como eu disse no início, o yoga é isso.

                            Se você entendeu o que é o hathayoga e tem certeza de que é isso que você busca, lamento informar: não há hathayogis devidamente iniciados oferecendo aulas e cursos presenciais no Brasil. O mais próximo disso que você encontrará são estes cursos on-line.

                            Se você busca a ginástica postural que os «professores de yoga» chamam de yoga ou de hathayoga ou de «hatha contemporâneo» hoje em dia, pergunte-se o que exatamente você está buscando. Se você busca benefícios corporais, atividades como musculação e natação trarão resultados mais impactantes — seja na definição muscular, no emagrecimento, na postura etc.

                            5) Ok, entendi que yoga é meditação e que meditar será melhor do que procurar aulas de yoga em escolas e «studios». Mas para meditar é necessário preparar a mente e principalmente o corpo, não? Se entendi bem, é isso que o hathayoga propõe e os «estilos de yoga» modernos, embora não sejam hathayoga, também proporcionam essa preparação física e mental para a meditação. No fim das contas, praticar um desses «estilos» não leva aos mesmos resultados do hathayoga e à construção da mesma base física e mental necessária para a meditação?

                            Imagine cinco práticas diferentes com intensidade de média a alta por 30 minutos. Todas elas exigem esforço físico e concentração. Todas elas queimam calorias, ajudam no fortalecimento muscular e desenvolvem foco mental:

                            1. musculação
                            2. corrida
                            3. exercícios isométricos
                            4. vinyasa 
                            5. natação

                            Ao final da prática, interrompa todos os movimentos, sente-se no chão numa superfície confortável e estável, sem apoiar as costas em nenhuma superfície, feche os olhos e permaneça imóvel e em silêncio por pelo menos 10 minutos.

                            A sensação de silêncio profundo, de mergulho em si mesmo, de desaceleração das oscilações mentais será muito parecida nos cinco casos.

                            O que quero dizer é o seguinte: se sua intenção é realmente praticar yoga — isto é, chegar à meditação, à vivência do silêncio profundo –, os chamados «estilos de yoga» proporcionam os mesmos resultados de atividades físicas comuns. Porém, isto ainda não é yoga e também não é a estabilidade física e mental que o hathayoga proporciona. Nos cinco casos mencionados acima ainda estamos fora do universo estrito do yoga e do hathayoga.

                            Retorno ao que já foi dito: se seu interesse verdadeiro é em yoga e se você quer começar de algum lugar, comece pela meditação. Os obstáculos que você encontrará para meditar 10 ou 15 minutos por dia — um tempo razoável para quem nunca meditou — serão muito menores do que os obstáculos que você vai criar para si mesmo alimentando a crença de que vinyasa ou yoga restaurativo ou yoga com props ou power yoga poderão levá-lo à vivência do silêncio profundo. Não se engane, seja honesto consigo mesmo.

                            6) O hathayoga é assim tão importante para quem busca a vivência do silêncio profundo?

                            Depende. Grandes yogis como Ramana Maharshi e Nisargadatta Maharaj não eram hathayogis. Eles realizavam yoga por outras vias — além da meditação, havia também o estudo filosófico e os satsangs (reuniões para aprendizado direto com o guru, o que reforçava a importância da ascendência e da tradição).

                            Se considerarmos que yoga é meditação para o conhecimento de si mesmo, veremos que o yogi não é o sujeito que faz cosplay de pretzel ou que consegue ver o próprio traseiro sem um espelho, mas sim o sujeito que medita e que a partir disso desenvolve um profundo conhecimento de si mesmo e um silêncio interior inabalável. Fim.

                            Ocorre que algumas pessoas demonstram o interesse em desenvolver tais qualidades a partir de técnicas de manipulação sensorial, corporal e mental. O hathayoga foi feito para essas pessoas.

                            O hathayoga não foi feito para quem quer usar essas técnicas para emagrecer, para definir os músculos, para tornar-se flexível, para reduzir a celulite, para transar melhor, para dormir melhor etc. Ainda que algumas técnicas do hathayoga possam produzir esses efeitos, o fato de elas não terem sido criadas com essas finalidades nos leva a concluir o seguinte:

                            – técnica corporal, respiratória, energética criada por hathayogis, integrada à tradição e usada para realizar yoga = técnica de hathayoga
                            – técnica corporal, respiratória, energética criada por hathayogis, isolada da tradição e usada para aperfeiçoar o corpo = técnica de ginástica

                            No fim das contas, é tudo uma questão de usar os nomes da forma correta. Chame de yoga o que é yoga, chame de hathayoga o que é hathayoga, chame de ginástica e auto-ajuda o que é ginástica e auto-ajuda. E para usar os nomes da forma correta é necessário saber o que eles significam.

                            7) O que isso tem a ver comigo? Eu nunca pratiquei yoga, apenas quero me alongar um pouco em casa para manter a saúde em dia e destravar a coluna. Já não sei mais se devo praticar yoga.

                            Yoga e hathayoga como definidos neste artigo, como entendidos por séculos e séculos, como perpetuado pelos mestres de yoga, não, acho que você não deve praticar yoga e provavelmente não tem condições nem interesse para isso.

                            Se você só quer se alongar um pouco, manter a saúde em dia e ficar mais flexível, o que você está buscando é um programa de ginástica em casa.

                            Há diversas «escolas de yoga» que oferecem aulas excelentes de ginástica. Há canais no YouTube com programas seqüenciais de «yoga» muito interessantes para quem tem problemas na coluna. Há instruções muito boas sobre séries de «power yoga» ou «vinyasa yoga» para quem visa o fortalecimento muscular e o emagrecimento.

                            Uso aspas com o termo yoga porque, obviamente, em nenhum desses casos trata-se de yoga. Cada vez que essas pessoas, esses professores, esses canais do YouTube, esses sites usarem o termo yoga, leia-se «ginástica indiana», que pode ser uma ótima opção para quem não gosta do barulho das academias de musculação ou da atmosfera «coach» das academias de crossfit.

                            Se o seu interesse principal é fazer ginástica num ambiente mais calmo, com pessoas que falam baixo e que cumprimentam você sem pegar na sua mão porque precisam usá-la para fazer o «namastê», esse «yoga» é perfeito para você.

                            Mas se o seu interesse principal é mesmo em yoga, repito: medite.